A utilização de reatores anaeróbios do tipo UASB para o tratamento de esgoto sanitário tem sido rotineiramente associada a uma maior emissão de gases de efeito estufa comparativamente a outros processos, notadamente os exclusivamente aeróbios. Por detrás desta associação residem importantes aspectos que carecem de discussão, sob pena de se produzir uma interpretação totalmente enviesada da realidade.
A argumentação central gira em torno da emissão de metano, que é o principal componente do biogás gerado no processo anaeróbio de tratamento de esgoto. De fato, o metano é um dos principais causadores de efeito estufa provenientes do ‘setor de tratamento de resíduos’, o qual engloba os subsetores de resíduos sólidos e efluentes. Trata-se de um gás com potencial de aquecimento global (GWP – global warming potential) equivalente a 28 vezes o potencial do CO2 para um horizonte de 100 anos, segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (do inglês – IPCC). Logo, em uma análise simplista, poder-se-ia imediatamente condenar o processo anaeróbio pela produção do biogás, o qual, em uma direção totalmente oposta, deveria ter sua geração incentivada posto que é uma relevante fonte energética (poder calorífico comparável ao do gás natural).
Obviamente, se o biogás gerado em estações anaeróbias de tratamento de esgoto for simplesmente lançado na atmosfera sem a devida queima – a qual tem por um dos objetivos principais a destruição térmica do metano – haveria inconteste contribuição direta para o incremento da pegada de carbono da ETE. Neste ponto, há quem julgue que o processo anaeróbio não é alternativa de tão simples operação, posto a necessidade de equipamentos complementares para a fase gasosa (leia-se, queimadores). Todavia, não se pode esquecer a comparação com a complexidade operacional em termos de equipamentos (aeradores/sopradores, principalmente) no caso de um sistema aeróbio. Aqui vale adicionar: ainda que a matriz elétrica brasileira seja predominantemente baseada em energias renováveis (principalmente hidroeletricidade), um sistema aeróbio compacto de tratamento de esgoto (p.ex.: lodos ativados) estaria emitindo 125 gCO2eq/kWh (fator de emissão estimado para a matriz elétrica brasileira; Miranda, 2012), equivalente a cerca de 250 gCO2eq/kgDQOremovida[1], ao passo que o processo anaeróbio teria o potencial de ser carbono neutro.
Não obstante, outra importante crítica poderia ser lançada aos reatores UASB tratando esgoto sanitário: e o conteúdo de metano dissolvido junto ao efluente tratado? Para lembrar, embora o metano gerado durante o processo de digestão anaeróbia da matéria orgânica apresente baixa solubilidade em água, importante parcela (até 40%) se encontra dissolvido na fase líquida sem ser recuperado como biogás. Neste caso, os avanços de projeto, construção e operação de reatores UASB obtidos nas últimas duas décadas deve ser levado em conta. Atualmente, há expertise consolidada para a incorporação de unidades simples, tais como as câmaras de dessorção, ao projeto de novas ETEs ou ao retrofitting das existentes, propiciando eficiências de remoção de metano dissolvido de até 85%. Em nossas estimativas, isso representaria um fator de emissão da ordem de 140 gCO2eq/kgDQOremovida[2],significativamente inferior àquele estimado para um sistema aeróbio clássico.
Mas então, é de fato possível se pensar em uma ETE carbono neutra baseada em reatores UASB? Neste ponto entra a importância do conceito atual de economia circular / recuperação de recursos no tratamento de esgoto. O biogás gerado no processo anaeróbio poderia ser utilizado em uma diversidade de alternativas, a listar, por exemplo: i) aquecimento de água para uso industrial ou em instalações hidrossanitárias, ii) fonte energética para cocção de alimentos em substituição ao GLP, iii) combustível veicular em substituição ao GNV, iv) secagem térmica de lodo, promovendo sua higienização e reduzindo a necessidade de transporte, v) geração de energia elétrica para consumo na própria ETE ou injeção no grid. Em todas estas possibilidades, a utilização do biogás implica no abatimento significativo de emissões indiretas de gases de efeito estufa, quer seja pelo fato de ser um combustível mais limpo (caso especial da comparação com o GLP, cujo fator de emissão do biogás representa apenas 0,3%), ou pelo fato de reduzir/evitar a utilização combustíveis fósseis no transporte de lodo, e de energia elétrica proveniente do grid. Resta superar barreiras regulatórias para estes usos do biogás sejam efetivamente seguros do ponto de vista jurídico-institucional, descortinando a efetiva possibilidade de ETEs anaeróbias carbono neutro.
Para além do potencial de as ETEs dotadas de reatores UASB terem pegada de carbono neutra ou, eventualmente, até positiva, há ainda os impactos socioeconômicos positivos associados ao desenvolvimento de novos modelos de negócio, inclusive aqueles de alto benefício social, considerando, por exemplo, a oferta de biogás a populações vizinhas em substituição ao GLP. Rotular a tecnologia anaeróbia como emissora de gases de efeito estufa, sem antes explorar as rotas de aproveitamento do biogás, é um retrocesso do setor de saneamento nacional.
Referências:
Lobato L. C. S., Chernicharo C. A. L. and Souza C. L. (2012). Estimates of methane loss and energy recovery potential in anaerobic reactors treating domestic wastewater. Water Science and Technology, 66(12), 2745–2753.
Miranda, M.M. (2012). Fator de emissão de gases de efeito estufa da geração de energia elétrica no Brasil: implicações da aplicação da Avaliação do Ciclo de Vida. MSc thesis. University of São Paulo.
Vaccari, M., Foladori, P., Nembrini, S., Vitali, F. (2018). Benchmarking of energy consumption in municipal wastewater treatment plants – a survey of over 200 plants in Italy. Water Science & Technology, 77.9, 2242-2252.
[1] Considerando o consumo típico de energia reportado por Vaccari et al. (2018).
[2] Considerando a geração de 158,3 NL CH4/kgDQOrem (Lobato et al., 2012)